Um monstro de carinha suave

Com frequência mostro (ou tento mostrar) que este ou outro pedaço da matemática é simples e fácil. Mesmo os que confiam em mim devem passar pelos momentos de dúvida se estou contando toda a verdade. Bem, não estou. Há coisas nem simples nem fáceis – e não é o lugar adequado para evocar estes fantasmas; é há fenômenos que vão bem com outras combinações destas palavras. Eis o exemplo de uma coisa simples e nada fácil. O problema é que a simplicidade termina na hora de formular a questão; resolvê-la é totalmente outro mundo.

Não quero criar aqui um susto por meios mecânicos, algo como uma trilha sonora que começa com estudo de Debussy e termina com final da sinfonia de Mahler. Gostaria de assustar discretamente, quase de modo imperceptível. Portanto deve ser uma questão que pode ser expressa em português simples mas tem um histórico de derrubar os pesquisadores. Não, não é a estória do último teorema de Fermat. Penso em algo bem mais antigo.

Aviso aos navegantes: não tente atacar este monstro com armas caseiras. Muitos tentaram e perderam tempo.

Bem, abro o segundo volume do livro History of the Theory of Numbers de L. E. Dickson. Na pag. 459, no início do capítulo XVI ele escreve:

Em um manuscrito árabe do século dez Mohammed Ben Alhocain afirmou que o objetivo principal da teoria de triângulos retângulos racionais é achar um quadrado que tanto aumentado quanto diminuido por um certo número k torna-se um quadrado.

Posso anotar isso com símbolos introduzidos na escola de primeiro grau: tomo um intervalo de comprimento x, o quadrado com este lado mede , acrescento e subtraio k e quero que ambos os números, x²+k e x²–k, sejam quadrados. À primeira vista não é claro que tais números racionais x,k existem. Mas a Fadinha está sussurrando: pegue 5 e 24. De fato, 5²+24 é um quadrado e 5²–24 é um outro quadrado. Pelo menos um exemplo existe. Mas como achar outros? E como saber se conhece-se já todos eles?

Algum trabalho de reformulação leva a gente a uma apresentação diferente do problema, mais popular hoje em dia:

Tenho um número natural k. Quero achar um triângulo retângulo com todos os lados de comprimentos racionais, tal que a sua área é k.

A simplicidade da formulação impressiona – mas pode chocar o nível de dificuldades quando busca-se uma solução geral.

Algum progresso apareceu bem recentemente, há 25 anos quando Jerrold Tunnell provou um teorema conhecido pelo nome dele – o teorema permite conferir alguns casos concretos mas não resolve a questão geral. Então sabemos hoje que por exemplo números k “bons” (chamados na literatura de congruentes) são 5, 6 e 7 – mas 1, 2, 3 e 4 não são congruentes. O caso de k=3 é fácil mas para k=1 (que é o mesmo problema de k=4, pois podemos dobrar a escala do triângulo e a área 1 tornar-se-a área 4) é muito, muito mais difícil.

Quer dizer: não há democracia entre os números e entre os problemas matemáticos. Uma formulação com aparência inocente pode levar a uma mina profunda de problemas matemáticos. De fato, o exercício em questão é a mais rápida (que eu conheço) entrada à teoria de curvas elípticas. O tópico poderia ser estudado nos cursos universitários no nível de graduação – mas em geral não é. Portanto, não se pode dizer que é um assunto elementar.

Na versão original desta nota (no meu blog em polonês) uma leitora, por sinal, filósofa, não engenheira, perguntou (uma pergunta eterna que procura enterrar as pesquisas matemáticas) “para que isso serve?” Bem, não servia durante os séculos mas, recentemente, tudo que tem conexões com criptografia (e portanto com a segurança da transmissão eletrônica de dados) é considerado um assunto que serve... Porém, a verdadeira defesa do problema soa de outro jeito: muitas vezes ”servir, ser útil” não é um verbo ligado com uma solução encontrada mas com uma busca de soluções. Sucessos científicos surgem quando os pesquisadores percorrem os caminhos mais inesperados; embora a expressão navigare necesse est descrevia um outro problema, também aqui ela é oportuna.