Andrzej Solecki

Tudo azul com a igualdade?

Entre palavras que resistem esforços de domesticação e sempre me fogem das claras e simples definições há tres casos um pouco desagradáveis porém importantes na minha vida profissional. Essa troica travessa é: estrutura, probabilidade e igualdade.

“Se você tem essas dificuldades” – perguntará alguém – “como então você ensina estruturas algébricas?” Bem, isso é um pouco parecido à diferença entre “sonho de valsa” e “sonho” – dos dois prefiro ter trabalho de descrever o primeiro… Deixando brincadeiras de lado, lembre-se se você também enfrentou esses momentos de hesitação: quando surge algum padrão de nuvens no céu ou de ondas na praia ou na sequência de sons da casa vizinha, você se pergunta se isso existe mesmo ou é apenas fruto da organização de dados que as nossas cabeças tentam inscrever em natureza?

Numa tentativa de contemporizar, matemáticos que mergulharam em estudos biológicos procuram evitar longas disputas filosóficas e falam sobre um “pequeno isomorfismo” que existiria entre a organização do interior da cabeça humana e do mundo externo. Uma espécie de mágica diminuição de escala que faz com que as ligações entre as imagens na cabeça acompanhem as relações entre entes que existem no mundo. Isso tornaria tudo mais fácil: estruturamos nossos conceitos pois conhecemos aquela estrutura no mundo real. Essa idéia é atraente mas de difícil uso como começo de limpeza conceitual pois aquela passagem entre os dois mundos, o tal de isomorfismo, caso existir, ele também reflete uma certa estrutura – e estariamos com problema adicional de círculo vicioso, já que esse grampo milagroso que une a cabeça ao mundo também vem de dentro da cabeça.

Preocupações desse tipo podem parecer demasiadamente afastadas do cotidiano de pessoas ditas “normais”, matemáticos ou não, mas certamente é mais fácil transmitir preocupações acerca de probabilidade. Pense, por exemplo, em uma simples frase: “nesse clássico Fla-Flu a probabilidade de Flamengo vencer é de 63%”. Deve ter grande variação de maneiras de compreender isso, como uma sentença superior ditada pela ciência (para maioria de pessoas que confiam em afirmações expressas em modo indicativo e contendo números e símbolos diferentes de letras), como fruto de algum levantamento que contabiliza os resultados de confrontos anteriores dos dois times (isso para leitores assíduos de páginas esportivas) ou como resultado de cálculos com determinado espaço de acontecimentos, $\sigma$-corpo de conjuntos e toda parafernália da teoria de probabilidade (isso para profissionais da área). Ótimo, mas o que significam todas estas maneiras se o jogo não vai ser hoje a noite mas já terminou há tres horas? Tendo isso em vista deve ser mais compreensível a pergunta sem visíveis respostas elementares: quando falamos sobre probabilidades referimos-nos a confusão que reina no mundo ou às incertezas que reinam em nossas cabeças?

Esta preocupação foi mais palpável, mais compreensiva? Ainda não? Então junte mais um pouco de paciência para ouvir sobre a terceira palavra: a igualdade. Aparentemente muito mais simples, pelos ares de sua simplicidade ganha maior abrangência – e maior chance de criar confusões em lugares inesperados.

O clássico ponto de partida para aventura em romance ou novela – uma troca de pastas iguais – mostra que em seu uso popular “igual” significa o seu oposto: “diferente”. “Bem” – virá contestação – “isso é por causa de imperfeição de nossos sentidos, aqui pode aparecer algum tropeço, a vida não é a matemática”. Certamente, a matemática – bem quista ou nem tanto assim – é um porto seguro para leigos, apoio quase religioso no mundo de incertezas e instabilidade. Dois mais dois é igual a quatro e nada o mudará.

Aviso aos navegantes: se numa viagem você ouvir num trecho de diálogo que dois mais dois é igual ao zero, mantenha sangue frio, relaxe e não parta para acertar a conta com o engraçadinho. Talvez ele não esteja gozando da sua cara nem acometido de acesso de loucura – pode ser que esteja contando em um relógio com apenas quatro horas marcadas. Se no seu relógio (digital) você nota que são dezenove horas então você conclui que em cinco horas será hora dita “zero”; quer dizer: sem ofender ninguem você trabalha as vezes com aritmética onde 19 + 5 = 0. Talvez o cidadão conte estações? Ou o número de turnos de trabalho que levam seis horas? Ou rodízio de pagamento por cervejas tomadas junto com seus tres colegas?

Desta armadilha há fácil saida. Nada de pânico, ninguem mexe com a sagrada igualdade. Quando fazem contas onde dois mais dois é igual a zero (ou dez, porque não?), a expressão “é igual” significa “define-se como”. É uma afirmação sobre certa convenção acerca da palavra “mais”, ou seja: é a noção de adição que ganha novo sentido.

Como é mesmo que a professora no primeiro grau explicava a igualdade? “Se temos dois valores colocados de dois lados de sinal "=" então sempre um lado pode ser substituido por outro lado...” Deve ter sido isso ou algo bem parecido. Regra simples e confiável. Mas... ponha esta regra de comportamento na memória e entre com ela num mercadinho. Aproxime-se ao balcão e diga a pessoa que lhe atende: “por favor, me dê cinco mais sete ovos”. A provável reação será a resposta: “então como, cinco ou sete?”. Ai você explicará que cinco mais sete são doze – e o ambiente ficará um pouco mais tenso. Se você quer mais experimentos, entre em outro estabelecimento com outra igualdade: “favor, quero raiz quadrada de cento quarenta e quatro ovos”. Agora, a mais provável entre respostas pacíficas é: “como é a raiz quadrada de ovo?”

De fato, para não ser um escárnio, no estilo de lastimáveis “pegadinhas” da TV que zombam de suas vítimas, tal experiência poderia ser feita só com alguem já preparado para aceitar bem as gracinhas – e capaz de entende-las; quer dizer: uma pessoa com grau de instrução por volta de dez séries. Então (nossa, a professora do primário não falou nada sobre isso) o uso do lado esquerdo em vez do direito pode estar sujeito à situação social, mesmo que a igualdade em questão reze só sobre relação entre números...

É fácil demais de ir complicando: por exemplo, o que quer dizer essa estória de $\sum_{n=0}^{\infty}{\frac{1}{2^n}} = 2$ ? Igualdade reservada ao uso particular de um permil da humanidade? Uma espécie de igualdade para uso em uma loja maçônica? Voltemos, então, ao primeiro grau. Aula de matemática, onde as vítimas ... pardon, os alunos preenchem longas colunas com lugares pontilhados: 6 + 8 = ... , 2 + 9 = ... , etc. Na sua opinião, quantos educadores não tratariam como uma prova de má-criação as seguintes respostas vindas dos seus objetos de esforços pedagógicos: 6 + 8 = catorze, 2 + 9 = 6 + 5 ...? Mas seria compreensível a resistência deles. Mesmo que seja fácil de conferir a correção dessas respostas, a aceitação desse tipo de enunciados abriria uma brecha incômoda, pemitindo que um aluno brinque com jogo de “quatro quatros” (escreva os números usando sempre quatro números 4 e vários símbolos como $+,-,\times,\div,\sqrt{x},!$) e ponha na folha de prova os quebra-cabeças como

$ 30 + 1 = \frac{4! + (4 + \sqrt{4})!}{4!}$.
Não é só o problema de uma correção de prova tornar-se uma sessão de tortura – mas resultados como este contrariam a expectativa que acompanha a leitura de texto matemático: “mais a direita – mais simples”.

Este é o problema: as nossas expectativas que são essenciais mas não são postas em palavras; “postulados implícitos” dir-se-ia na gíria matemática. Símbolos matemáticos empregados hoje com tanta naturalidade são resultados de difíceis consensos obtidos durante séculos. Como todos os consensos, têm algo útil e algo esdrúxulo, um pouco de claramente anunciada promessa de algo novo – e muitíssimo de velho que nem coloca-se por escrito, apenas permanece na conciência coletiva. Aquele “lado esquerdo vale o mesmo que o lado direito” é um manifesto de boas intenções , a parte “lado direito é mais fácil do lado esquerdo” está apoiada na tradição de leitura de escritas ocidentais e na esperança que o futuro será sempre melhor.

A parte esdrúxula é aquela que permite fundir constatação acerca de objetos conhecidos com introdução de objetos novos. Nenhuma máquina aceitaria a besteira de misturar frase “definiendum é introduzido pelo definiens” com outra do tipo “esta coisa vale tanto quanto outra” (e é por isso que falando com a máquina em C, é preciso distinguir entre “=” e “==”).

Não é a hora de entrar em conversa sobre os irmãos siameses Enunciado e Significado (nem hora, nem competência, já que isso é o ganha-pão dos linguístas), estou cutucando apenas a nossa convicção que tudo está claro quando se diz que esses cincos, um do quadro-negro e outro do caderno, são iguais. Obviamente não são as mesmas coisas, um é escrito com giz e outro com caneta (e sobre significados melhor nem falar pois dificilmente o mestre e o aluno compreendem do mesmo jeito a noção do número). Quando decido passar por cima de claras diferenças e digo “estas coisas são iguais” trata-se do seguinte: “ao que interessa, as diferenças não terão nenhuma importância, portanto, por favor, esqueçam-nas”. Isto quer dizer que nesse processo matemático (considerado abstrato e desumano) há dois elementos escondidos: vontade individual (quero obter certo objetivo e por isso embarco nessa viagem) e consenso social (o que adianta ter a definição revolucionária de algum “$\pi$ oval” se o mundo não quer aceita-lo...). A decisão de igualar coisas diferentes é um processo de criação de um ente novo e não enxergamos isso pois em geral chegamos quando o espetáculo já terminou e a cena parece muito antiga. Como em cada atuação artística, tem aqui uma grande parcela de trabalho técnico que garante que a montagem não vai desmoronar no meio de espetáculo (e matemáticos dizem que a “igualdade” é uma de possíveis “relações de equivalência”) mas não vou tratar disso agora. Sim, é a mesma coisa, mas mesmo assim, isso são outros 2 $ \times $ 250.